A Universidade Católica no Mundo de Hoje I

Eurico de Andrade Neves Borba, (70, ex professor e ex Vice Reitor da PUC RIO, ex Presidente do IBGE, ex Secretario Executivo da Associação de Mantenedoras de Escolas Católicas, escritor, aposentado mora em Ana Rech – RS)


                                   Originalmente o esboço deste texto foi preparado em 2008, como uma contribuição à Secretaria Geral da CNBB, um subsídio para pronunciamento da Conferência Episcopal numa reunião de Universidades Católicas. Não foi aproveitado. Passados três anos, autor que sou das notas, sinto-me desobrigado em mantê-lo oculto e trato, agora, de adaptá-las para, em forma de artigo, abordar tema que me parece atual, necessário e urgente de ser debatido pelas instituições católicas de ensino superior.
É um tema complicado e delicado, pois estaremos lidando com o principal vetor que fundamentou o processo civilizatório no Ocidente, fruto da pregação cristã: - o convívio, (nem sempre tranqüilo...), entre a fé e a razão. A fé alimentando a progressiva reflexão ética no inescapável viver das pessoas em sociedade, exaltando a liberdade, a justiça e a democracia, e a razão fazendo progredir as artes e a pesquisa científica e tecnológica possibilitando, assim, uma melhor vida para os povos.
Ao se reconhecer a importância do processo educacional para a missão evangelizadora da Igreja outra questão se coloca de imediato: - até que ponto o processo educacional católico é totalmente livre, em suas praticas, dos ensinamentos perenes de Deus Pai Criador, expressos na Sagrada Escritura e explicitados pelo Magistério Eclesial?

“Entre os fatores que favorecem o influxo da Igreja na formação cristã dos americanos, deve-se ressaltar sua vasta presença no campo da educação, especialmente no mundo universitário. As numerosas universidades católicas espalhadas no continente constituem um aspecto característico da vida eclesial na América. Da mesma forma, no âmbito do ensino primário e secundário, o elevado numero de escolas católicas oferece a possibilidade de uma ação evangelizadora do mais alto alcance, desde que seja acompanhada por uma vontade decidida a fornecer uma educação realmente cristã.”(Exortação Apostólica Pós-Sinodal - Ecllesia in America, S. S. João Paulo II, 1999, nº 18).
“No projeto global da nova evangelização, o setor da educação ocupa um lugar privilegiado”, (idem, nº 71)

Assim sendo, debruçar-me-ei, sobre os pressupostos que julgo ser o fundamento desta atividade acadêmica no mundo atual, “nascida no coração da Igreja...”, (Constituição Apostólica Ex Corde Eclessiae, sobre as Universidades, João Paulo II, 1991), e sobre a qual existem inúmeros pronunciamentos do Magistério Eclesiástico.
O Magistério Eclesial, vale lembrar, por se tratar de um instrumento e método da transmissão da nossa fé - estruturado ao longo de dois mil anos de história da Igreja, “Mãe e Mestra”, pelos Papas e os Bispos, tem por objetivo ensinar, sem erro, o que é a fé católica, num permanente processo de explicitação dos seus princípios, criando uma doutrina organizada e logicamente estruturada.
Em decorrência da incontornável determinação do próprio Senhor Jesus, que assim ordenou aos seus apóstolos: “...ide, portanto, e fazei que todas as nações se tornem discípulos,...” (Mt. 28, 19 ); bem como: “...e enviou-os a proclamar o Reino de Deus e a curar os enfermos....”, (Lc 9,2), a Igreja Católica tem o direito e a obrigação de educar. Não só transmitir conhecimentos gerais com alto nível de qualidade, mas, também, ao mesmo tempo, de ensinar a todos a Verdade expressa pela Palavra de Deus, da qual a Igreja é depositária privilegiada e indicar os caminhos para a cura de todos os males, inclusive os males da ignorância, da injustiça social, da agressão ambiental, do aviltamento da natureza da pessoa humana, do afastamento da Lei Natural e do desconhecimento da Verdade primeira.
As escolas e universidades católicas são, antes de tudo, obras da Igreja, criadas e mantidas pela Igreja, destinadas a evangelizar os povos e as nações, promovendo e promulgando a dignidade e a natureza impares da pessoa humana – “ser individuo de natureza racional, livre e social” - “de todo o homem e de todos os homens”.
Inúmeras Congregações Religiosas, ao longo dos últimos séculos, foram criadas com o objetivo de educar o Povo de Deus e assim bem evangelizar. Ao transmitir às novas gerações o conhecimento e a sabedoria elaborada no passado, vinculado a uma inteligente consciência critica, possibilita o aperfeiçoamento progressivo do conhecimento da Verdade. As escolas e universidades católicas são o mais importante instrumento de evangelização nos nossos dias.
A que Verdade estou me referindo? Refiro-me à Verdade primeira, que trata de explicitar o mistério de Deus, da Criação e da Pessoa Humana. Tudo o mais deriva destas permanentes indagações iniciais. Vale reproduzir as palavras precisas e sábias do Magistério da Igreja:

“A Igreja acompanha igualmente com zelosa solicitude as escolas de nível superior, sobretudo as Universidades e as Faculdades. Mais ainda: naquelas que dela dependem, procura de modo orgânico que cada disciplina seja de tal modo cultivada com princípios próprios, método próprio e liberdade própria de investigação científica, que consiga uma inteligência cada vez mais profunda dela, e, consideradas cuidadosamente as questões e as investigações atuais, se veja mais profundamente como a fé e a razão conspiram para a verdade única, segundo as pisadas dos Doutores da Igreja, mormente de Santo Tomas de Aquino. E assim se consiga a presença publica, estável e universal da mente cristã em todo o esforço de promoção da cultura superior, e que os alunos dessas instituições se formem homens verdadeiramente notáveis pela doutrina, preparados para aceitar os mais pesados cargos na sociedade e ser testemunhas da fé no mundo”,(Gravissimum Educationis, Declaração do Concílio Vaticano II sobre a Educação da Juventude, 1965).

“É uma honra e uma responsabilidade da Universidade Católica consagrar-se sem reservas à causa da verdade. Esta é a sua maneira de servir ao mesmo tempo a dignidade do homem e a causa da Igreja, a qual tem ‘a intima convicção de que a verdade é a sua verdadeira aliada... e de que o conhecimento e a razão são ministros féis da fé’. Sem de modo nenhum desprezar a aquisição de conhecimentos úteis, a Universidade Católica distingui-se pela sua livre investigação de toda a verdade a cerca da natureza, do homem e de Deus. Com efeito, a nossa época tem necessidade urgente desta forma de serviço abnegado que é proclamar o sentido da verdade, valor fundamental sem o qual se extinguem a liberdade, a justiça e a dignidade do homem. Em prol duma espécie de Humanismo universal, a Universidade Católica dedica-se completamente à investigação e todos os aspectos da verdade no seu nexo essencial com a verdade suprema, que é Deus. Portanto, ela, sem medo algum, empenha-se com entusiasmo em todos os caminhos do saber, consciente de ser precedida por Aquele que é ‘caminho, verdade e vida’, o Logos, cujo espírito de inteligência e de amor concede à pessoa humana encontrar, com a sua inteligência, a realidade ultima que é a sua fonte e termo, e o único capaz de dar em plenitude aquela Sabedoria, sem a qual o futuro do mundo estaria em perigo”, (Constituição Apostólica Ex Corde Ecclesiae, sobre as Universidades Católicas, nº 4, João Paulo II, 1990).


“Foi Deus quem colocou no coração do homem o desejo de conhecer a Ele, para que, conhecendo-O e amando-O, possa chegar também à verdade plena sobre si próprio.”(Encíclica Fides et Ratio, início, João Paulo II, 1998).

Com os ensinamentos citados, creio que posso adiantar, na minha modesta perspectiva, algumas conclusões sobre o papel da Universidade Católica no mundo de hoje. Um mundo em rápidas e sucessivas mutações, em todos os setores da atividade humana, alterando, do dia para noite, conceitos morais, saberes históricos, perspectivas consolidadas para o futuro da humanidade. Não é um mundo mais seguro, mais tranqüilo que no passado. Pelo contrário – é um ambiente em transformação que, por vários motivos, tornou-se progressivamente hostil à Pessoa Humana e ao espírito do Humanismo.
Nos dias de hoje, uma crise global de proporções nunca antes vivenciada pelos povos, atinge todos os aspectos da conduta humana, no seu viver em sociedade, em todas as regiões do globo. Os conflitos violentos entre nações, a brutalidade do crime organizado e do tráfico de drogas, o terrorismo sem fronteiras, a sensação de mal estar que aflige as pessoas, a desagregação da família, a vulgaridade agressiva da maior parte do programas da mídia, a geração de empregos que não é suficiente para atender a todos, a péssima distribuição de renda entre cidadãos, regiões e países, a cristalização de situações de dominação por uma classe dominante cada vez mais insensível ao clamor dos marginalizados das benesses do desenvolvimento, o não acesso aos sistemas e educação de qualidade por expressiva parcela das populações, o desrespeito aos direitos humanos, tudo isso se acumulando sem que se tenha uma razoável esperança de encontrar uma resposta justa, capaz de reverter a situação e de garantir melhores dias num futuro próximo, para a maioria das populações.
Religiões, mormente as cristãs, são contestadas e internamente se interrogam, com alguma perplexidade, sobre o papel que devem desempenhar nestes momentos cruciais da história da humanidade. Sistemas políticos, econômicos, sociais, jurídicos, não satisfazem nem respondem mais às necessidades, às inquietudes e às indagações dos povos sobre o futuro que nos aguarda. Uma classe de irresponsáveis privilegiados fortalece a cada dia que passa suas posições de decisão e de poder político e econômico, sem que a maioria da população, amortecida pela ação do marketing que tudo vende e a todos parece convencer, possa participar do processo de decisão de forma efetiva. Parece que os povos se deixam levar pelas exortações mais imediatas de qualquer coisa que lhes ofereça ilusórias perspectivas de prazer e segurança, de uma sobrevivência pobre de valores Transcendentais sem os quais a vida passa a ser uma mera existência sem sentido.
Parece que no tumulto das concepções éticas dos dias atuais, sustentada por uma frágil concepção do que vem a ser a liberdade, impera a noção de que tudo pode ser feito pois, ao contrário, se estaria agredindo a liberdade e a democracia – “é proibido proibir”. Nada é estável e definitivo. Tudo é passível de ter um custo, um preço, delegando-se a um mercado impessoal a função de decidir o que produzir, o que consumir, como e quando distribuir o que é produzido. Estou me referindo ao que ocorre neste mercado livre, desde a produção e ao consumo de alimentos até obras de arte, desde a estruturação e da organização familiar à procriação, ao lazer, à cultura, à saúde e à educação, enfim a todas as necessidades humanas.
Em nome de uma sempre bem vinda e desejada segurança, por exemplo, no emprego, no atendimento médico e educacional, nas finanças pessoais, na integridade física e patrimonial das pessoas, cada vez mais se abre mão da privacidade e da liberdade dos cidadãos delegando-se ao Estado ou a classe dominante a função de decidir – o que importa é a sociedade, o coletivo, o consumo, a ordem estabelecida pelo processo de produção, pelo mercado. Procura-se, a qualquer preço, um mecanicismo de organização social onde as manifestações de espontaneidade e vontade populares não prejudiquem o mercado e o poder da classe privilegiada que realmente consome e decide. Não se olha mais para o outro como um irmão ou uma irmã, mas sim como um corrente, atitude esta que destrói a necessária solidariedade, vinculo que possibilita a vida social com a perspectiva da promoção do Humanismo, do bem comum e da justiça.
As tecnologias que a cada momento são ultrapassadas por outras semelhantes e mais poderosas, condicionam as ciências que passam a ser instrumentos de inovação com vistas a gerar outras novas tecnologias que vendem e lucram. Esta atitude só faz aumentar o poder da classe dominante que a cada dia se impõe não só pela posse do capital mas também, agora, pela posse dos saberes, pelo uso de tecnologias as mais variadas. Os milhões de marginalizados do progresso, os pobres, perdem poder de contestação sobre os rumos adotados pela humanidade – são meros espectadores do processo histórico do qual deviam ser, também, um dos protagonistas.
Assim se enfraquece a ciência como investigação livre do mistério do Cosmo e da vida, sem outra perspectiva a não ser o conhecimento puro, sem a necessidade de ter uma aplicação pratica imediata, como justificativa de sua existência. O puro saber, em todas as áreas do conhecimento, é um valor em si que jamais deve ser perdido de vista, pois foi assim que história da humanidade progrediu – a beleza do conhecer pelo conhecer. As aplicações concretas são decorrências impulsionadas pelas necessidades, iluminadas pela inteligência e liberdade, que localizam neste estoque de conhecimentos adquiridos pela ciência a fonte para o progresso tecnológico. Universidades fazem ciência, empresas e indivíduos desenvolvem tecnologias.
Vejamos alguns exemplos dos medos que condicionam, nos nossos dias, o viver, o agir e as decisões coletivas. O espectro de uma possível escassez ou mesmo de falta de combustíveis que possam atender a demanda de energia, de todo o planeta, amedronta os planejadores que não se importam com a poluição atmosférica e se dedicam à procura de novas reservas de combustíveis fosseis sem a preocupação de dedicarem tempo, recursos e conhecimentos, já existentes, na procura de fontes alternativas de energia não poluente. Brinca-se com a vida como se a biotecnologia fosse um novo jogo de experimentos sofisticados, com vistas, sempre, a conquista de pretensos objetivos nobres, uma teia de meias verdades de conseqüências nefastas para a humanidade, pois banaliza, pela manipulação irresponsável e desrespeitosa do mistério extraordinário da vida, a própria vida que dizem querer promover. Curar doenças assassinando fetos para pesquisas; ou melhorar a produção de alimentos com clonagens de plantas e animais que não se sabe a que possíveis desequilíbrios estruturais da cadeia ambiental poderão nos conduzir são questões a serem tratadas com uma perspectiva ética, mormente nas Universidades Católicas.
Os sistemas políticos, econômicos e jurídicos cultivam a eficiência maximizando os investimentos sem verificar se a pobreza e a miséria estão sendo reduzidas de modo permanente, pelas novas propostas, ou se, pelo contrário, se está a promover novas formas de dominação de muitos por alguns poucos que, agora, detém, também, as fontes do conhecimento.
O meio ambiente, a mãe terra ferida e doente, por suas reações naturais que começam a se manifestar de forma agressiva, talvez venha a ser a ultima esperança da redenção da humanidade. Aterrorizada pela devastação praticada e com medo das conseqüências dos danos que provocou, é possível que a humanidade venha a rever, de imediato, as fontes dos danos que estão a causar a décadas. Aí estão, como desafios a serem enfrentados, a alteração climática, as chuvas ácidas, a escassez progressiva de água potável, a extinção de várias espécies vivas. Agindo motivada mais pelo temor das conseqüências ambientais, que já se apresentam, do que pela pratica da virtude da pregação evangélica, a humanidade, assim procedendo, possa descubrir, ainda a tempo, o valor da solidariedade, como única forma de unir homens e mulheres para que, com amor e fraternidade, criem as condições efetivas para o renascer do Humanismo, da paz e da justiça, da recuperação ambiental – a nossa casa comum. Superar a degradação ambiental e os males sociais gerados pelo liberal capitalismo, pelo entendimento de ser a solidariedade e a ética fundada na crença da Transcendência o único caminho eficiente a ser trilhado, talvez venha a ser o resultado do medo físico de extinção da vida, não uma virtude adquirida pela educação ou pela pregação religiosa. Não importa por onde comecemos – importa preservar a vida e recuperar o espírito do Humanismo cristão. Neste sentido, motivados pelo medo, os povos descubram que a solidariedade pode vir a ser um bom negócio...
O nosso lar comum, o planeta Terra, está ferido de morte. As condições para uma catástrofe ambiental global já estão instaladas. Os conflitos sociais cada vez mais freqüentes e violentos e a desagregação das sociedades democráticas estão à vista de todos e em muitos lugares passaram a ser uma experiência de vida quotidiana.  A humanidade corre o risco de sobrevivência física. O viver democrático, a liberdade e a justiça, pressupostos de uma forma de vida civilizada, estão sob risco de desaparecer como experiências políticas de expressão histórica. Não podemos nos esquecer, nunca, que a vida acontece e se desenvolve em limites ambientais físicos muito bem definidos – rompidos esses limites as ameaças à sobrevivência surgem com força nas mais diferentes formas – temperatura atmosférica, nível dos mares, regime de chuvas, disponibilidade de água potável, radiação cósmica, possibilidade de expansão de áreas agricultáveis, energia.
Perante tão grave crise global, frente a tais desafios sucessivos, complexos e interdisciplinares, que colocam a humanidade inteira perante a possibilidade de até um desaparecimento, ressurge o chamamento, o clamor coletivo, o apelo angustiado dos nossos irmãos e irmãs para que surja uma indicação, uma orientação confiável que fale poderosamente aos corações e mentes das pessoas – como superar esta crise global que a todos aflige? Ressurge nos povos, mal delineado e confuso nas suas manifestações de protesto, a necessidade de fé na Transcendência, na solidariedade, no amor, como que uma intuição coletiva de que é por aí que a humanidade recuperará sua orientação histórica, que existiu forte no passado na construção do Humanismo, uma peregrinação rumo a um futuro mais justo, mais solidário, mais livre, mais humano.
(continua)