Eurico Borba, Relexões sobre a Crise Global ......

Sociologia´, Política e Religião

Textos

Só com minhas companhias
Só com minhas companhias



A idade torna-me um sobrevivente.
Amigas e amigos, muitos, a maioria
já não estão mais aqui.
Complicado ser amigo sem que, pelo menos,
trinta anos de convivência venham a facilitar as conversas, sem tudo ter de explicar.
A amizade é um estado de espírito em que duas ou mais pessoas
se sentem felizes, aconchegadas, aceitas, conversando ou, apenas,
ficando juntas, sozinhas, em silêncio, numa profunda compreensão mutua.
Hoje fico só, sem ninguém, com minhas novas companhias:
- lembranças, musica, páginas de um livro, simulações de visões e situações,
um teatro só meu, ninguém mais o entenderá....
De vez em quando fico triste por saber que meus queridos não
podem, comigo, desfrutar daquele momento, tão especialmente construído, para que se possa continuar a viver razoavelmente ativo e relativamente feliz..
Poucas vezes sou feliz.
A maior parte do tempo que me resta me leva à sensação, crescente,
de gostosa indiferença – tudo é aceito pois os acontecimentos ao redor
são inevitáveis, perturbações da minha permanente expectativa.
Contemplo, (penso contemplar...), o Absoluto que me aguarda.
A oração é atitude esporádica, pois não sei mais rezar,
muito menos conversar com Deus, que me aprontou tantas na vida...
No momento o vento balança o verde da mata que tenho no meu campo de visão.
Não consigo mais distinguir os pássaros, seus cantos,
só os beija flores que chegam perto, ariscos, voando ligeiro.
Acompanho as nuvens, por horas, até elas se desfazerem.
Tomo conta de uma formiga que atravessa o peitoral da janela.
Não deixo de verificar se a abelha que estava voando por aqui continua solitária,
não mais encontrando flores, fato que a desnorteia.
Então, de repente, sem me perguntarem se é meu desejo, vem alguém e
empurra minha cadeira dizendo alto – está na hora do almoço...
Engulo o que me socam na boca
e  já deduzo o que virá a seguir:
- repouso, banho, janela, até que gritem – jantar...
Depois televisão e a seguir cama, sem antes me colocarem um fraldão higiênico.
Não sei se o sorriso estupidificado, que sei que estampo na face,
é agradecimento ou deboche da situação.
Apagam a luz e volto a pensar,
no  único momento em que ainda sou autônomo e livre – faço o que quero.
Volto à infância, volto ao colégio e recordo as aulas de Latim e declamo:
“Arma verunque cano...”) - gostava do Virgilio...
De repente estou novamente no bar do Zé e com chope e muita gaiatice canto:
“sê mariquinha o seu gato deu, vinte cinco pirocadas na bunda do meu”...
Então ria muito e terminava meu chope contente por ser moleque.
Está na hora de ir até a Tabacaria comprar cigarros. Acabei de me tornar outra pessoa.
- Sou o Esteves, “o que não tem metafísica” – e aguardo o Fernando
chegar na sua sacada e me saudar – “Olá Esteves”...
Então, também me recomponho na minha condição
mas não sorrio...
Neste instante as luzes se apagam, na Casa de Repouso Um Novo Viver...
Durmo, aos poucos, esperançoso de não mais acordar,
abraçado ao belo corpo nu da amada que me acompanha nos sonhos,
perfeitamente aninhada no meu.
Nada mais sinto a não ser o gosto dos beijos que se esvanecem com as caricias,
aquelas que ambos nos concedíamos, há muitos anos atrás...
Amanhã vai ser tudo igual? A mesma rotina de prolongamento inútil
de uma existência exaurida?
Preciso treinar a pensar mais, a simular mais, reescrevendo, no pensar,
muitas vidas prazerosas, as que não tive mas que gostaria muito de ter vivido...
É bom, faz bem mentir para si mesmo com todos os detalhes, seqüências,
cheiros e gostos, sons, e principalmente as falas não ditas mas que agora proferidas
me causam um encanto e uma satisfação indescritível.
Arraso com as minhas respostas, conduzo multidões com os meus discursos,
encanto alunos com minhas aulas, levanto platéias lendo meus poemas,
seduzo todas as mulheres que desejei, falando, com perfeição,
todas as línguas: te quiero mujer, je t’aime. I love you, ti amo.
Agora estou no La Scala e canto com Callas o dueto mágico da La Bohème:
“o  soave fanciulla, o dolce viso di mite circonfuso alba lunar, in te ravviso
il sogno ch’io vorrei sempre sognar!”
Que belo tenor que sou...
Sonhei? Ronquei muito ou falei dormindo? Estou com a boca seca.
Será que a formiga e os beija flores hoje vão aparecer?



Eurico de Andrade Neves Borba, Ana Rech, fevereiro de 2012

Eurico de Andrade Neves Borba
Enviado por Eurico de Andrade Neves Borba em 14/03/2012


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