Eurico Borba, Relexões sobre a Crise Global ......

Sociologia´, Política e Religião

Textos

Maestro Andrade Neves
Pequenos Contos
O Maestro Andrade Neves


Vou contar a história, certamente resumida, de Jose Joaquim de Andrade Neves, meu tio, irmão da minha mãe, que foi musico, compositor e por muitos anos dirigiu o Conservatório Musical do Rio Grande do Sul.
Uma vida simples. Magro, de altura mediana, era sóbrio, calado, bem vestido, educadíssimo, acolhedor, criava canários belgas, tocava flauta, compunha músicas e exibia um belo e permanente sorriso emoldurado por olhos vivos cheios de bondade e de alegria. No fim da vida ficou muito surdo e sua voz adquiriu o timbre característico, monocórdio, de quem não escuta mais,
– “o Beethoven e eu, surdos que nem uma porta – ainda vou escrever uma 9ª como ele...”, dizia rindo muito.
Cumpria um ritual diário: acordava, invariavelmente, às cinco da manhã, cuidava dos canários, vestia-se com esmero sem dispensar uma gravata com pregador de pérola e ia cedo, de bonde, para a Praça da Alfândega, no centro de Porto Alegre. Num café antigo – a Confeitaria Central – (que não existe mais), se encontrava com outros músicos, ex-alunos e amigos. Tomavam uma média com pão e manteiga e conversavam sobre as ultimas do mundo musical do mundo e da cidade – as performances, as gravações que estavam sendo ofertadas, os programas de rádio, os achaques de cada um naquela comunidade de velhos. Falo dos anos de 1950...
Já aposentado nos visitava várias vezes por semana. Aparecia, invariavelmente por volta das oito horas da manhã. Chegava e sem se fazer anunciar, sentia-se em casa, gritava para o andar de cima,
– “Elvirinha, Bonifacio, cheguei, chega de dormir...”
Papai e mamãe resmungavam, mas não tinham escolha. Logo depois desciam de roupão – tomavam café enquanto o tio Zezé bebericava um cafezinho e falava do tempo, do movimento do centro da cidade, das manchetes do Correio do Povo, e,quando se sentia satisfeito de conversar, ia embora a pé. Morava na mesma rua que nós, na 24 de outubro, mais embaixo, quase na esquina da Quintino Bocaiúva.
Papai, também aposentado, dizia a cada visita: -
“o Zezé é muito cacete com estas visitas quase de madrugada... Acorda as cinco, já foi à cidade e acha que estão todos disponíveis para suas conversas que não variam...”
Mamãe admirava o irmão – “deixa o menino Bonifacio, ele gosta da gente e de vir aqui”.
Tio Zezé tinha o mesmo nome do bisavô, o Barão do Triunfo, que a maioria das cidades do Rio Grande homenageia com o nome de uma das suas ruas – Andrade Neves. Foi herói na Guerra do Paraguai e nas lutas da bacia do Prata, entre 1840 e 1869. Morreu lutando, na tomada de Assunção – dizem que suas ultimas palavras, delirante com a gangrena que se instalara na perna por conta de uma bala paraguaia, fora um brado de comando: “mais uma carga, camaradas”. Tio Zezé era manso e tranqüilo, o Barão, contavam, era brabo, mandão e irrequieto, mas o nome era o mesmo.
A vida do futuro maestro foi muito interessante. Sentava por horas para ouví-lo contar as suas histórias. Ia visitá-lo com freqüência para ver os canários e tentar estudar musica. Não deu certo. O tio dizia:
-“você é como sua mãe e pai, não entoam, não têm ouvido, não percebem a lógica da música...” Com esta sentença definitiva meu futuro como musico acabou-se...
  Contei vinte e três gaiolas que cuidava com meticulosa delicadeza. Usava, em casa, um pijama, um roupão grosso, chinelos alcochoados com meias, (sentia frio nos pés). As gaiolas estavam penduradas na garagem, (ele nunca teve um carro), e com as portas abertas entrava muito sol, pela manhã, para “esquentar” os pássaros, dizia ele. Era uma festa estridente de cantos. Limpava cada gaiola e os canários amarelos, brancos ou mesclados, eram alimentados como se fossem exemplares únicos - metade de um ovo cozido duas vezes por semana, para cada um.
- “O segredo é a água sempre limpa e o ovo – deixa o canto dourado como a gema que comem...”.
Fez seus estudos básicos em Porto Alegre no Colégio Militar e depois em Saicã, onde meu avô, à época coronel da arma de cavalaria, comandava a fazenda de reprodução dos cavalos para o Exército no Rio Grande. De lá foi para o Rio de Janeiro estudar musica, seu gosto desde pequeno, na Escola Nacional de Musica, (o prédio existe até hoje, o Museu de Belas Artes, ao lado do Teatro Municipal). Sua preferência era a flauta transversal. Talentoso, formou-se em primeiro lugar e ganhou uma medalha de ouro – Honra ao Mérito – única coisa que ostentava com orgulho.
Os parcos recursos do coronel seu pai o fez morar numa modesta pensão em São Cristovão. Contava que habitava o sótão,
– “um calorão daqueles durante o dia, mas fresquinho à noite e sem goteiras. No inverno carioca, de madrugada, chegava a fazer algum frio...”, contava com saudades.
Para não incomodar os outros hóspedes, que reclamavam, ia praticar sua flauta no telhado. Tirava com cuidado as telhas, subia e sentado no telhado praticava por horas suas lições. Nas noites, depois das aulas, ia tocar piano,
“naqueles modelos estante difíceis de afinar e de sonoridade precária, nos cinemas mudos ou nos teatros de revista, para ganhar o jantar e mais alguns cobres...” .
São Cristovão, desde o Império, ainda era um bairro chique e a Cinelândia começava a despontar como o ponto central da vida noturna do Rio de Janeiro.
- “Sabe, guri, que tudo de importante acontecia ali? - manifestações políticas, namoros, as pessoas caminhavam nas calçadas prá lá e prá cá, jantares finos, chás com torradas de Petrópolis, o cinema era uma novidade que atraia multidões e eu tocando sem parar até o povaréu ir embora... Gostava daqueles tempos. Divertia-me”, contava o tio Zezé.
Na época os primeiros colocados ganhavam uma viagem prêmio de aperfeiçoamento à Paris, mas o tio Zezé não foi:
- “o meu francês é muito ruim, lá faz muito frio e o que eu tinha de aprender já aprendi aqui. Se me pagassem para assistir concertos em Viena, Berlim, Milão, Bruxelas, eu iria com muito gosto.”
Voltou para Porto Alegre, fixou-se no bairro Moinhos de Vento e a partir daí sempre morou lá. Dava aulas de musica no Conservatório, ensinava com especial cuidado os poucos que optavam pela flauta, regia a incipiente orquestra sinfônica porto-alegrense,
– “com estes instrumentos sem qualidade, depois de um dia de trabalho como bancários ou comerciários, quase sem ensaios, a orquestra mais assassinava a musica do que tocava alguma coisa que prestasse...”, dizia com seriedade e exigência.
Eram tempos heróicos para aqueles que se dedicavam às artes. Progrediu como professor querido pelos alunos. Chegou a Diretor da instituição lá permanecendo por muitos anos, até se aposentar.
Compôs várias peças: três sinfonias, cinco concertos para flauta, quartetos para flauta, violinos e viola, várias sonatas e uma marcha militar dedicada ao Regimento de Cavalaria Andrade Neves, do Rio de Janeiro que, para seu desgosto, nunca foi executada – perderam as partituras, foi a notícia que chegou.
Comprou um terreno, (um hectare), perto de Osório, no caminho de quem seguia para a praia de Tramandaí. Nem cercado o terreno era – macegas e uma grande figueira. Perto do terreno havia um rancho, o do Zeferino, que ficou seu amigo e cuidava do cavalo que comprara. Dava para ir a pé do ponto final do velho ônibus, que fazia a linha de Porto Alegre a Osório, até a chácara do Zeferino. Tio Zezé, durante anos, aos sábados, saia cedo com um cantil de água, um sanduíche de queijo e mortadela, três ou quatro bananas, calças e paletó usados e, sozinho, ia “passear na sua propriedade”. Conversava um pouco com o Zeferino, encilhava o seu cavalo e ia num trote comedido e elegante, “estilo inglês, que aprendi com meu pai... – eu montava muito bem”. Até a sua “estância”, como dizia. Amarrava o cavalo com um laço comprido, “para o animal poder pastar”, sentava encostado na arvore e ali passava horas a pensar. No que pensava nunca me contou
– “pensava e descansava os olhos com aquela paisagem tão gaúcha, com aquele silêncio tão especial”, narrava com voz baixa e olhar emocionado.
Foram anos de passeios e de meditações que só para ele tinham sentido e explicação. Era feliz nestas suas andanças da memória. Mesmo depois de casado continuou a visitar sua propriedade. Um dia cansou-se, vendeu e nunca mais andou a cavalo ou saiu de Porto Alegre...
Casou-se com uma ex-aluna, Ceci Costa, que, depois de formada, também passara a lecionar piano. A tia Ceci. Tinham uma preciosidade em casa, um Steinway de cauda que quase enchia toda uma sala da casa onde moravam. Contavam que os dois, em duetos que nunca escutei, se divertiam muito tocando juntos.
Tia Ceci era uma morena baixinha, cabelos bem negros, que mesmo depois de idosa os fazia permanecer assim. Um coque arrematava o penteado e era fantástica ao conversar – só ela falava, com frases compridas, palavras nobres e requintadas, abusava de algumas que parecia adorar pronunciá-las: “percalços”, por exemplo. “Sortilégio” e “catadupas” eram outras. Sempre que o assunto permitia, fazia questão de mostrar sua bela pronuncia do francês que falava correntemente: “ça va son dire mon enfant” era a sua frase preferida. “Bien sur” outra, ou “ele não convence, quando conversa é só um “jeu de mots”. E assim prosseguia com graça e desenvoltura de gestos com as mãos. Exuberante nas suas descrições de fatos ou de situações, falava quase que só no superlativo – “abundantíssimos, riquíssimos, estudiosíssimo, cansadíssimos, sofredíssimos..., o Villa Lobos é um compositor da melhor qualidade, suas bachianas são preciosíssimas peças musicais”...
Não tiveram filhos. Possuíam um cachorro da raça fox-terrier que estava sempre por perto. Velho, (a tia contava que o Zorro, o nome do cão, tinha mais de 20 anos, velhíssimo), andava pela casa se orientando pelas paredes em que ia se esfregando. Uma empregada, amiga de todos nós, a Etelvina, cuidou com carinho especial dos dois, até o fim. Era de Camaquã, morreu vitima de um câncer meses depois do desaparecimento dos tios, tendo herdado tudo o que deixaram.
Tia Ceci estava sempre extenuada, deitada numa chaise long, com um roupão preto com rosas bem vermelhas e ramagens verdes espalhadas por todo o pano, e com algum mal estar. Tio Zezé esmerava-se em preparar chás com biscoitos e saladas de fruta – (“é quase só o que a coitadinha come, por causa desta colite danada que não a abandona, desde mocinha...”).
Foram pouco ao cinema. Não perdiam a oportunidade de lembrar, com entusiasmo juvenil, o filme sobre música – Fantasia – do Walt Disney: “eu gostaria de ter feito algo parecido para as crianças”, dizia o tio Zezé sorrindo de entusiasmo. O outro que recordavam, com prazer, era o Caruso, com o Mario Lanza fazendo o papel do famoso tenor.
- “Um belo filme, escutei o Caruso logo que cheguei ao Rio de Janeiro, cantando La Boheme”, lembrava o velho tio. Quase não iam a Igreja, mas rezavam diariamente, pelo menos assim me contavam – “um tempo do dia deve ser dedicado às orações, não é mesmo Zezé”. E o tio concordava, calado, com um sorriso algo maroto.
- “É Ceci, o que seria de nós músicos sem Deus e a Virgem Maria... Teríamos todos morrido de fome...” e então ria gostosamente.
Em Porto Alegre eram meus tios preferidos – como gostava de observá-los e de escutá-los. Um casal perfeito na vida retirada e tranqüila em que viviam. Foram anos de paz aqueles em que eles, juntos, num estilo amoroso que aos dois bastava e encantava, testemunhavam a possibilidade de um encontro abençoado.
Tio Zezé morreu primeiro – um funeral discreto como fora sua vida. Nem uma nota nos jornais. Na descida do caixão alguém tocou numa flauta, por breves momentos, uma das suas peças. Melodia simples, frases musicais singelas, mas agradáveis – lembravam o canto dos passarinhos. Dizem que foi uma ex-aluna, já idosa, que, finda a apresentação, foi embora discretamente, sem se despedir.
Tia Ceci morreu meses depois,
– “a casa não existe mais, meu filho, o Zezé é que dava vida a esta mansão. Mesmo surdo ele conversava comigo o dia inteiro, era tão bom... Dei os passarinhos, pois eu e a Etelvina não tínhamos mais como cuidá-los. Estou desoladíssima, vivendo uma solidão sofrida povoada de lembranças e de saudades. A falta do Zezé e a minha colite antiga estão me matando aos poucos, percalços cada vez mais difíceis de vencer...”
Faleceu dormindo. Foi enterrada junto com o marido. Não houve fundo musical. Naquela casa e na nossa família, o piano e a flauta calaram-se para sempre, só restando recordações, que me fazem sorrir de alegria com a certeza de que conheci um casal feliz que me ajudou, muitíssimo, a acreditar na possibilidade de beleza e felicidade na vida...
Por este motivo, para que algumas outras pessoas possam saber desta possibilidade, escrevi esta história.
Eurico de Andrade Neves Borba
Enviado por Eurico de Andrade Neves Borba em 09/06/2010


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