Eurico Borba, Relexões sobre a Crise Global ......

Sociologia´, Política e Religião

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Pequenos Contos - Um Padre Sem Expressão
Um Padre Sem Expressão




Descendia de alemães. Pais católicos. Possuíam uma chácara, quase uma pequena fazenda. Leite era o que produziam, queijos também. Hortaliças e frutas só para o consumo da família . Oito irmãos.
Criara-se perto de Nova Petrópolis, na serra gaucha. A propriedade fora dos avós, emigraram da Pomerânia, no final do sec.XIX, ainda no tempo do Império. O pai herdara as terras, casara e trabalhara muito. Ele, Carl, nascera em 1933. Ele e mais três irmãos tornaram-se padres. Carl, do clero diocesano, retraído, formara-se no seminário de Caxias do Sul, com grandes dificuldades. Os irmãos, brilhantes, jesuítas, estudaram em São Leopoldo e depois no exterior. Duas irmãs foram ser freiras. Em casa ficaram dois irmãos. Casaram-se, construíram casas no terreno da família e criaram muitos filhos.
Carl, desde criança, rezava muito, de joelhos. No seminário nenhuma matéria lhe foi fácil. Aprendera o latim suficiente para rezar o breviário. Sabia o catecismo de cor e lia e relia as Sagradas Escrituras. Bastava para alimentar sua fé. Dizem que se não fosse sua devoção à Virgem e a boa vontade do Reitor não teria sido ordenado...
Foi designado para a pequena e afastada paróquia de Santa Clara, perto do distrito de Forqueta, lá permanecendo toda a sua vida. Alto, poucos cabelos, andar meio encurvado, pesadão, pés e mãos enormes, olhar espantado. Passou a fazer parte da paisagem da pequena comunidade durante meio século.
Gostava da sua rotina: levantava-se às cinco horas, tocava o sino da Igreja, rezava a missa, tomava seu café e ia dar aulas de catecismo na escola. Almoçava com as freiras do colégio e voltava para uma pequena sesta. Reunia-se com Dona Frida, que cuidava da secretaria. Informava-se de tudo, fazia os pagamentos, cuidava da receita da coleta, inteirava-se da vida dos seus paroquianos e depois saía para visitar os doentes e os velhos da sua região. Ministrava os sacramentos e ouvia com atenção e carinho as suas lamúrias. Jantava com alguma família com a qual, antes, rezara o terço. Convites não lhe faltavam. Toda a noite participava de uma reunião de coordenação dos trabalhos em andamento na sua paróquia e ficava satisfeito, em especial, com o que realizavam pelos pobres e pelas crianças.
Dormia tarde, sem sonhos ou solidão, nem angustias. Não lhe preocupavam questões metafísicas pois intuía “de que a metafísica é uma conseqüência de estar mal disposto...”.
Nos fins de semana celebrava três missas: uma no sábado à tarde e duas aos domingos, às nove e às dezenove horas.
Era um homem bom, caridoso, simples e pobre – dava tudo que ganhava dos seus paroquianos e vestia-se com os presentes dos amigos que se preocupavam com sua batina lustrosa, que nunca abandonara, e com os seus sapatos de solão grosso, invariavelmente rotos. Discreto, tímido, era querido por todos.
No confessionário, onde permanecia horas, ou nas visitas, quase não falava, escutava com atenção. Não encontrava quase pecados para apontar, mas sentia-se obrigado a aconselhar e absolver. Suas penitências eram mínimas, em raras ocasiões uma admoestação. Invariavelmente, com a absolvição, fazia um pedido: cuide os filhos com carinho, ajude os pobres, visite os doentes e os idosos. Ficava apavorado quando os penitentes lhe propunham duvidas sobre as suas práticas sexuais: – uso da camisinha, da pílula, posições, freqüência, relações fora do casamento, adultério. Não conseguia, muitas vezes, entender sobre o que falavam. Invariavelmente dizia: – consulte o seu coração, esteja tranqüilo com a justiça do Pai, ele tem mais coisas com que se preocupar, mas se sentires desconfortável com tuas ações não as pratique mais. Era assim sempre. Os paroquianos saiam menos culpados e com muitas duvidas sobre o que deveriam fazer. O PE. Carl achava que isso era adequado – eles iriam meditar, por alguns momentos, sobre a caridade de Deus.
Nas missas a Igreja sempre estava cheia, pois suas predicas eram rápidas e gostosas de ouvir: falava do amor, da misericórdia infinita de Deus, das colheitas, da ajuda aos pobres e aos enfermos, a necessidade de carinho e de acompanhamento das crianças por parte das famílias. Amava as famílias. Sua fonte de inspiração era a sua família com seus pais idosos, seus irmãos e a multidão de sobrinhas e sobrinhos.
Os irmãos, jesuítas, sempre encontravam uma maneira de passar, pelo menos, uma semana por ano com os pais e com o irmão, padre do interior, de quem sentiam muita falta e que com sua simplicidade quase ingênua, transmitia uma tranqüilidade de fé muito grande. Ele quase não entendia o que os irmãos contavam: – as disputas eclesiais e as novas teses teológicas, filosóficas, marxismo, teologia da libertação. Então pedia, nas suas infindáveis orações noturnas, bênçãos para os queridos irmãos e graças para que ele não fosse tocado por aqueles problemas complicados – aborto, eutanásia, células tronco, virgindade de Nossa Senhora, ordenação de mulheres, fim do celibato, opção pelos pobres, nova evangelização, revolução social. Aquilo tudo não existia na sua paróquia, no seu mundo cujos problemas maiores eram a chuva e as geadas – que maltratavam as plantações. Mas deviam preocupar muito o Papa e os Bispos. Rezava por eles - era o que podia e sabia fazer.
Parecia que o seu Bispo estava satisfeito com o seu trabalho, insistindo, inclusive, para que tirasse duas semanas de férias por ano. Seus paroquianos e o Bispo, tão amigos, gostavam dele e com estas certezas palpáveis ele se sentia muito feliz.
Um dia percebeu que envelhecera. Tomando como referência as idades que os Bispos colocavam o cargo à disposição falou com o seu Bispo, quando fez setenta e cinco anos, e foi logo afastado.
Foi morar, sem ressentimentos, na residência dos padres idosos da Diocese e ajudava a cuidar deles. Tornou-se superior da casa e o dia inteiro, no tempo que lhe restava, orava pela Igreja, pelos seus antigos paroquianos, pela paz no Brasil e no mundo, pelas crianças, doentes e velhos, orava pelas famílias, pela sua família agora distante.
Para o seu lugar mandaram um jovem padre. Chegou de motocicleta, bem falante, calças jeans e camisa esporte com a inscrição: Reforma Agrária Já. Mudou logo a maneira de ser e o ritmo próprio da Paróquia, que passou a se esvaziar. O pastor, bonachão e verboso, do pequeno templo da Assembléia de Deus, maravilhou-se com as novas adesões que, de repente, começaram a surgir na sua até então pequena congregação...
Cinco anos depois, no fim de uma fria tarde, o PE. Carl foi encontrado morto num banco do jardim da casa em que morava. Estava com o breviário e o terço na mão, os óculos no rosto, e um sorriso nos lábios. No chão uma foto amarelada do dia da sua ordenação, junto com toda a sua família. Alguns paroquianos antigos juram, até hoje, que na madrugada seguinte a Senhora do Caravaggio desapareceu do seu altar por algumas horas e que o Pe. Carl foi visto caminhando, de mãos dadas, com uma figura de mulher de vestes longas e de extraordinária beleza, em direção ao nascente, sorrindo, falando e gesticulando muito, como nunca fizera, numa manhã de esplendoroso alvorecer.

Eurico de Andrade Neves Borba

Eurico de Andrade Neves Borba
Enviado por Eurico de Andrade Neves Borba em 04/07/2010


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