Eurico Borba, Relexões sobre a Crise Global ......

Sociologia´, Política e Religião

Textos

O Espião Morava em Ana rech
O espião que morava em Ana Rech.

Eurico de Andrade Neves Borba



O espião chamava-se Helmuth Malher.
Nasceu no vale do Rio Caí, em Estrela, lá na planície que começa nos pés da serra geral e vai até o rio Guaíba.
Estudou com os padres franciscanos, completou o ginásio e o científico, mas não conseguiu entrar na universidade, seu sonho antigo: queria ser engenheiro. Seus pais eram alemães, pomeranos, mas ele nasceu no Brasil. Seu pai, de uma habilidade natural extraordinária, um “faz tudo” nato, atendia aos pedidos de instalações elétricas, que começavam a prosperar, tratava de bernes profundos em animais e pessoas, escavava poços, consertava motores parados, fazia cessar com três ou quatro golpes de rebenque os choros convulsos das senhoras histéricas e com xarope de guáco curava as tosses das crianças. Era querido na comunidade e vivia com Dona Ertha um casamento exemplar, com 11 filhos, todos vivos e bem criados. Dona Ertha não cultivava amizades nem atendia ninguém – cozinhava, costurava e disciplinava, com o chinelo de couro e as orações familiares coletivas, o seu pequeno batalhão. A casa limpa, cortinas nas janelas, flores no jardim da frente, arvores frutíferas nos lados, hortaliças e galinhas no quintal dos fundos.
Helmuth cresceu neste ambiente seguro, limpo, disciplinado e bem educado. Naquela região todos eram pessoas de bem – os pecados eram cometidos entre quatro paredes e ninguém sabia nem comentava. A disciplina transmitida e aceita, nas famílias, pelos pastores luteranos da tradição alemã e pelos padres franciscanos, pelas professoras e professores, era algo natural e ninguém notava o que os sociólogos, muitos anos mais tarde, viriam descrever com uma “estrutura familiar de dominação opressiva e autoritária...”. Pelo que sabe, nas conversas familiares, fruto desses tempos de rígida disciplina, ninguém foi parar em tratamentos psicanalíticos, ou se separaram das suas famílias, ou usaram drogas, ou se tornaram homossexuais, ou foram corruptos, ou presos por embriagues. Esses dados não constam dos levantamentos estatísticos nem nas estórias contadas nas freqüentes visitas que as famílias se faziam.
Mesmo assim Helmuth não gostava da região, não gostava da geografia da região, do calor dos meses de verão. Nada o prendia à sua pequena cidade. Olhava demoradamente para o sudeste, em direção à Porto Alegre ou voltava-se para o norte e ficava horas a admirar a serra gaúcha. Não tinha amigos. Seus vizinhos, uns pomposos luteranos, os Geisel, que não eram nada cordiais, não se misturavam. Os rapazes, um pouco mais velhos, o Orlando e o Ernesto, eram arredios, escorados nas suas arrogâncias de meninos disciplinados e estudiosos, foram para o exército e se deram bem na vida – um Ministro da Guerra, (como se chamava na época o responsável pelo o Exército) e o outro Presidente da Republica. Uma irmã se tornou professora e por anos dirigiu a escola Rio Branco, em Cachoeira do Sul. Os Lorscheiter moravam um pouco mais distantes. O Aloísio, era mais moço, santarrão, sacristão e ensimesmado, um sorriso de anjinho barroco com olhar incisivo, desde pequeno, foi cedo, com sete anos, para o seminário dos franciscanos, e depois, já rapaz, foi estudar em Minas Gerais e na Europa e progrediu na Igreja, chegou a Cardeal e quase foi eleito Papa.
Helmuth criou-se meio só, com muitos livros, sonhos e ginástica calistênica, que aprendera num manual distribuído na escola junto com o tão esperado Almanaque anual Capivarol, que ensinava tudo e apontava datas e informações importantes: eclipses, répteis venenosos, receitas para conservas, os santos do dia, frases de homens famosos. Era alto, forte, louro e bonito, segundo a classificação das moças da terra.
Lia muito. Ia até Porto Alegre para ver, na porta da Livraria do Globo, quase na esquina da Avenida Borges de Medeiros com a Rua da Praia, a entrada dos seus autores e tradutores favoritos: Erico Veríssimo, Mario Quintana, Raul Bopp, Viana Moog, que trabalhavam lá. Assinava a coleção Terra, Mar e Ar, e lia todos aqueles livros de aventuras. Aprendera alemão com os pais, latim com os padres, e com as aulas e esforço próprio o francês e o inglês. O espanhol, qualquer pessoa bem formada, principalmente as que vivem no Rio Grande do Sul, fala com algum desembaraço. Agora se interessava pelo grego e não largava uma gramática e uma seleta de textos do Pe. Augusto Magne, jesuíta que andava a bisbilhotar livros e documentos antigos, lá no Rio de Janeiro, no Colégio Santo Inácio.
Todas essas possibilidades do saber e do agir estavam em sua cabeça jovem, mas sabia que para poder exercer todas essas opções precisava de dinheiro ou de muito trabalho. Confessava a si mesmo que não era dado a esforços heróicos – estudar, trabalhar para o seu sustento, morar sozinho, longe de casa, era exigir muito do seu estilo de vida contemplativo. Sabia que não podia exigir mais sacrifícios dos seus pais e irmãos - a família mal se sustentava no seu patamar de classe média baixa – descer um pouco mais seria uma desonra inaceitável para o seu pai. Helmuth gostava muito do seu velho, da sua família, para impor mais um sacrifício em seu favor, como filho mais velho. Iria trabalhar. Jogava na loteria federal compondo números com as inspirações mais exóticas: numero do tumulo do Frei Werthe, seu querido professor recentemente falecido, a placa do primeiro carro que avistasse ao sair da missa de domingo, o numero de estrelas que honestamente pudesse contar em noite  sem nuvens e assim ia descobrindo palpites celestes certos e confiáveis. Queria ser rico.
Freqüentava, com um convite especial por conta do seu desempenho físico, a SOGIPA, um clube alemão que mudara de nome para não ofender a gauchada – eram os melhores atletas, as louras mais lindas de Porto Alegre estavam lá, o melhor coral, e até uma tropa de escoteiros. Pelo menos uma vez por mês passava os domingos no clube. Chegava cedo para poder acompanhar todas as atividades e participar de competições.
A partir de 1933 impressionou-se com a ascensão do nazismo. Correspondia-se com seus primos, o ramo da família que permanecera na Alemanha e recebia descrições das obras e ações que Adolf Hitler empreendia na terra natal do seu pai. Que bom se aqui no Brasil se pudesse fazer o mesmo – estradas, industrias, mecanização da agricultura, portos, Forças Armadas poderosas... Passou a freqüentar as raras reuniões onde o nazismo era apresentado em reuniões que aconteciam em Porto Alegre. Pediu a seu pai ajuda para visitar a Alemanha. Juntou dinheiro e comprou uma passagem em navio do Lóide Brasileiro que saia de Porto Alegre.
Desembarcando em Hamburgo passou seis meses passeando pela Alemanha e visitando a família. Ficou extasiado com o progresso, a disciplina social, o entusiasmo da população com o progresso que desfrutavam – eram concentrações imensas onde o povo delirava com os discursos do fuhrer .
Não gostou de ver a maneira como os judeus estavam sendo tratados e perseguidos. Conversou com um padre, depois da missa de domingo e recebeu uma resposta estranha, que não o convenceu, mas ficou calado:
- é horrível o que estão fazendo, mas é um problema antigo aqui na Europa. O melhor é ficar quieto e não se meter neste assunto que já dividiu o povo alemão e pode complicar tua vida. O nazismo livrou a Alemanha do comunismo e isto é o mais importante.
Quis se naturalizar e entrar para a Marinha, ser submarinista. A sua petição de naturalização foi rejeitada por razões pouco convincentes e disseram que deveria voltar para o Brasil.
Uma tarde estava lendo na sua pensão, em Berlim, quando foi visitado por um casal muito circunspecto em seus casacões de couro que não tiraram. Identificaram-se como funcionários do Governo. Demonstraram alegria pela disposição que Helmuth demonstrara em se tornar alemão e pertencer ao corpo de submarinistas. Conversaram muito sobre o que fazia, o que conhecia, o que pretendia fazer e muito objetivamente, olhando em seus olhos o convidaram:
- precisamos de espiões competentes na America do Sul. O senhor é filho de alemães, admira o nosso sistema, fala vários idiomas, mora perto da fronteira argentina onde nossos aliados e simpatizantes são muitos. Seus antecedentes são ótimos, discretos. Pode nos prestar grande serviço.
- Fazendo o que?
- Ficando atento ao que o Brasil e os Estados Unidos pretendem em relação à Argentina. Acreditamos que se nossas relações se estreitarem mais eles vão tentar invadi-la. Não irão aceitar uma base operacional nossa, principalmente para a Marinha, no sul do continente. Acreditamos que possam invadi-la.
- Mas o que teria de fazer? Nem emprego eu tenho.
- Observar. Ficar atento para o aumento de efetivos militares, construção de campos de pouso para aviões, navios de guerra no porto de Rio Grande, boatos e outros assuntos que a tua sensibilidade julgar conveniente que conheçamos.
- Eu não sei se posso. Seria uma traição ao Brasil. Como enviaria as mensagens? Como iria sobreviver?
- Pode. O Brasil seria nazista se o Getulio Vargas não fosse tão temeroso da ação dos americanos. O Brasil gosta do Getulio e ele de nós. Com suas ações em prol dos trabalhadores, certamente ficará à frente do governo ainda por muitos anos. A guerra, que um dia virá, mostrará que somos mais fortes do que todos os outros países europeus e os Estados Unidos juntos e que o nosso sistema de governo é o ideal para liderar os povos. Somos a melhor garantia contra a União Soviética e o comunismo. Neste momento futuro o Getulio viria rápido para o nosso lado. O senhor apenas iria ajudar a adiantar esta circunstância histórica inexorável. O senhor seria um soldado da causa da Alemanha lutando de outra maneira.
- Vou pensar. Vou pensar. Mas como irei sobreviver, viajar, observar, transmitir as mensagens?
- O senhor ficará “adormecido” desde o momento da sua volta. Aprenderá o uso de códigos, a usar um rádio transmissor de ondas curtas, comprará um bom rádio receptor, um Telefunken  por exemplo, de tal forma que possa ouvir as rádios alemãs onde, em determinados dias e horários, que só o senhor saberá, serão transmitidas instruções para orientar a sua ação. Vamos providenciar, também, uma representação comercial para o senhor – arame farpado, que o Brasil importa da Alemanha. O senhor ficará com o mercado do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina e ficará rico.
A mulher quase na falava. De boina, com belos olhos azuis, só ficava encarando. O homem dissera tudo.
- Amanhã, não temos tempo a perder com o seu treinamento, o senhor nos dará resposta, que espero seja afirmativa. A senhora Ingrid ficará com o senhor mais algum tempo para tirar quaisquer outras duvidas, ela é muito convincente...
- Está tudo muito rápido, disse Helmuth em voz baixa. Preciso de tempo. Vocês viraram minha vida de cabeça para baixo com esta proposta. E se for pego pela polícia.
- A polícia brasileira é muito primitiva. Se o senhor proceder com a cautela e a inteligência necessária nada acontecerá. Em todo caso, fornecemos para os nossos espiões um comprimido de cianureto – mata em cinco segundos, sem dor disse rindo com vontade. Seria uma glória morrer pela nossa causa, não?
E foi embora sem nada mais falar. Ingrid riu e disse:
- Herr Stepinak é muito objetivo e direto. Assusta, não?
- Assusta e entontece
- Vamos tomar alguma coisa, sinto que tua boca está seca.
- Vamos, tem um bar na esquina.
E lá foram os dois. Ela confiantemente calada e ele silenciosamente preocupado.
Conversaram o resto da tarde. No final ela já estava segurando sua mão e acariciava seus cabelos.
- É verdade que lá nos trópicos vocês são calientes e sabem fazer uma mulher ter prazer/
Helmuth assustou-se. Sua única experiência fora num puteiro em Porto Alegre, na volunta, a rua Voluntários da Pátria, onde o mulherio atendia uma ampla clientela, com grande desenvoltura. Sempre fora ele que tomava a iniciativa e sentia-se pouco confortável em ser seduzido assim tão diretamente por uma mulher.
Voltaram para pensão, trancaram-se no quarto e se amaram a noite inteira com o risco de quebrarem a cama tal a exuberância das práticas executadas, com maestria motivada pelo inusitado das circunstâncias, mais pela funcionária governamental – um fodão pensava Helmuth.
No dia seguinte, num novo encontro, Helmuth concordou com tudo e só pensava em como poderia continuar a se encontrar com a Ingrid. Levaram-no para Munique, uma escola de espiões. Com Ingrid como professora aprendeu a usar a pistola, tintas invisíveis, tipos de código, alfabeto Morse, uso do rádio, psicologia, formas de disfarce, microfotografia, e uma porção de outras técnicas julgadas importantes para a vida de um espião. Nas noites, após o treinamento, possuía a alemã com cada vez mais sofreguidão.
Dois meses depois foi apresentado a um senhor que o ensinou tudo sobre arame farpado: formas de comercialização, importação e exportação. No terceiro mês, com equipamentos disfarçados numa mala de fundo falso, a documentação perfeita, carimbada na Embaixada brasileira, apresentava-o como representante da fábrica produtora de arame, e mais tabelas de preços, manuais de propaganda, mostruários, embarcou de volta para o Brasil. Começava o ano de 1935. Antes de embarcar, com a recomendação de que gastasse com moderação para não levantar suspeitas, entregaram-lhe trinta mil marcos, uma fortuna.
- É para o senhor se instalar com modéstia e poder trabalhar com tranqüilidade nos próximos anos. Quanto menos contatos conosco é melhor, só as mensagens rápidas e objetivas para não serem detectadas pela escuta brasileira ou a inglesa ou a americana. Uma boa casa, um bom escritório de representação e muita discrição. Case com uma boa moça, vá a Igreja, ajude uma escola católica, um asilo, participe das festas nacionais, pendure a bandeira brasileira em casa e no escritório, faça amizade com políticos ajudando-os nas suas campanhas, pois eles adoram ser ajudados. Faça amizade com jornalistas, industriais, comerciantes e fazendeiros. O senhor será um homem de posses. Ofereça almoços e jantares, não muitos, mas convide as lideranças locais. Escreva de vez em quando para os jornais locais, se possível um livro sobre a história da região. Seja um patriota vibrante e participante para que nunca pensem no senhor como um possível simpatizante do nazismo. Fale mal de nós, não muito é claro, mas critique. Vamos nos dar muito bem e o senhor nos ajudará muito.
Helmth voltou visitando antes a Itália, Suíça, França e Inglaterra. Admirou-se com os museus, comprou muitos livros de história e de filosofia. Foi a óperas, concertos, teatro, sentava-se nos parques e observava a população. Que bom se o Brasil pudesse ser assim, organizado e disciplinado...
Chegou a Estrela como um personagem especial. Passara mais de um ano na Europa. Voltara como representante de uma fabrica alemã de arame farpado – estava com o futuro garantido.
As moças da pequena cidade ficaram alvoroçadas – um bom partido da cidade estava disponível, um representante comercial do útil e procuradíssimo arame farpado. Casou-se com uma morena, se antigo sonho e recôndito desejo pelas morenas bem queimadinhas... a Carmem, filha do açougueiro, para a tristeza dos seus pais que desejavam como nora uma descente de alemães, loira e de olhos azuis.
Carmem era filha de um descendente de portugueses e de uma mãe oriunda de família bem misturada – italianos e até um tataravô índio e uma bisavó negra. Carmem Silva sabia enlouquecer Helmuth na cama fazendo-o esquecer da walquiria Ingrid, que ainda vinha preenchendo seus sonhos e fantasias. Além de bela fêmea, era ótima dona de casa, prometendo ser boa parideira, ajudaria a criar uma imagem de perfeita família brasileira, não levantando a menor suspeita sobre as suas secretas atividades de espião. Passaria a ser, com o casamento com a morena, um descendente, um gringo perfeitamente integrado.
Helmuth subiu a serra à procura de um pouso permanente aonde pudesse se instalar e a começar a trabalhar. Sabia da pujança de Caxias. Foi lá passar um fim de semana. Hospedou-se num hotel modesto, longe do centro da cidade, em Ana Rech, o Hotel Bela Vista.
Encantou-se pelo local, pela paisagem, pelo isolamento e pelo povo da pequena vila.
- Aqui eu fico. Ao lado de Caxias, uma cidade importante, muitos descendentes de italianos, perto de Porto Alegre, comunicação fácil com todo o estado apesar da precariedade das estradas, trem, isolado, todos dormem cedo, inverno rigoroso, verão ameno, um retiro ideal para um espião.
Comprou um terreno um pouco afastado, perto de uma pequena capela que uma família de descendência italiana mandara construir, ergueu uma sóbria e sólida casa e cultivou um belo jardim. A casa era muito parecida com as que vira na Alemanha. Casou-se e mudou-se para Ana Rech no final de 1936.
Os filhos vieram anualmente, com precisão germânica, alternadamente, homem e mulher. Dez filhos: cinco homens e cinco mulheres.
Vendia arame farpado em quantidades imensas, os fazendeiros estavam dispostos a cercarem seus campos. Os pedidos vinham com constância apreciável de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul, mais o mercado uruguaio em que penetrara naturalmente, até da fronteiriça Argentina compravam o seu arame farpado, de muito boa qualidade. Enchia um navio a cada seis meses com várias toneladas do produto e toda a carga era vendida a um preço bem razoável. Ficou conhecido dos fazendeiros. Viajava muito no carro que comprara pelas estradas de terra, muito ruins. Usava um guarda pó por sobre as roupas, boné e óculos especiais para se proteger da poeira, principalmente nos meses de verão. Helmuth era conhecido em todo o estado, e recebido com carinho. Generoso nas doações para as obras de caridade e colégios, parcimonioso nas gorjetas nos hotéis e restaurantes, virou o queridinho de padres, freiras, bispos e pastores luteranos. Era um ecumênico nas suas contribuições. Até o Hospital Alemão de Nova Hamburgo ajudou a expandir e a modernizar.
Escrevia para os jornais, recebia os amigos para almoços, conversava com os políticos ousando conselhos sobre o mundo rural que conhecia cada vez mais.
Duas ou três vezes por ano comunicava-se por meio do seu rádio transmissor com o seu controlador na Alemanha:
- Tudo calmo. Observando. Mensagens curtas como havia sido recomendado.
Toda noite, depois que Carmem e as crianças se recolhiam, escutava a rádio alemã no seu aparelho, mas nenhuma mensagem lhe foi enviada.
E assim chegou a 1939 quando, em setembro, a guerra se iniciou na Europa com a invasão da Polônia e a declaração de beligerância da França e da Inglaterra que comunicaram ao mundo que estavam combatendo o nazismo, os alemães e o fascismo italiano.
Em outubro do mesmo ano um fazendeiro argentino, também descendente de alemães, numa visita comercial disse, displicentemente, no meio da conversa:
- Helmuth, comece a produzir informações. Você está muito parado. Agora sou teu contato aqui na America. Qualquer coisa que te preocupe, qualquer duvida, venha me vender arame...  
Helmuth ficou pasmo, assustado, outra pessoa aqui deste lado do Atlântico sabia da sua missão de espião e retratava, na sua advertência, uma certa descrença na sua eficiência em produzir algo de interesse para a Alemanha.
Helmuth não sabia de nada, não percebia nenhum movimento de tropas, o Brasil continuava com o relacionamento diplomático com as nações em guerra e as transações comerciais não haviam sido interrompidas. O que informar que pudesse ser de interesse para os serviços de inteligência alemães?
Passou a ler os jornais com mais atenção, principalmente o Correio do Povo. Nos encontros com sua clientela, com seus inúmeros conhecidos, tentou, com sutileza, como quem não quer nada, apenas conversa despretensiosa, saber se conheciam alguma coisa, se o Brasil iria romper com a Alemanha, se os americanos tinham aumentado sua presença no sul, se a população estava indisposta com os germânicos. Percebeu algumas medidas contra os descendentes dos imigrantes que não podiam mais falar, nem em suas casas o idioma alemão e o italiano. Nas colônias, onde até as aulas eram dadas nestas línguas, por facilidade de comunicação com as crianças que só conversavam em casa e na rua na língua dos seus pais também o uso do alemão e do italiano fora proibido. Publicações antigas com as quais a população das colônias se haviam se acostumado não circulavam mais. Alguns denuncistas de ocasião, pessoas perversas, querendo aparecer e se fazer de importantes, começaram a apontar “atividades estranhas” de alguns descendentes, geralmente desafetos ou concorrentes nas suas atividades econômicas. Muita gente foi presa e interrogatórios brutais se seguiam sem que os descendentes entendessem o que estava acontecendo e sobre o que estavam sendo interrogados. Uma pratica sórdida que provocou muitas injustiças e o medo que se alastrou por toda a serra gaucha.
Mas ele não sofreu nada. Era um cidadão exemplar, ele e sua numerosa família eram queridos pela comunidade. Nunca foi chamado pelas autoridades e chegou até a receber um prêmio para sua orquídea, cultivada com esmero, numa exposição do Clube Leopoldina.
Suas mensagens passaram a ser mais freqüentes:
- animosidade contra os descendentes de alemães e italianos aumenta em todo o Brasil.
- os editoriais dos jornais são sistematicamente contrários a Alemanha e a Itália.
- os argentinos e uruguaios estão exportando muita carne e couro para a Inglaterra pelos portos de Buenos Aires, Montevidéu e alguma coisa por Rio Grande.
As respostas eram exigentes:
- mais precisão. Queremos saber toneladas, datas dos embarques.
Mas Helmuth não sabia nem se esforçava em obter estas informações.
Em 1941 o Japão ataca os Estados Unidos em Pearl Habor, no Havai. Em 1942 os primeiros torpedeamentos de navios brasileiros. O Brasil declara guerra à Alemanha e à Itália. Helmuth dilacera-se em duvidas. O que fazer? O ultimo navio com o carregamento de arame farpado havia chegado e o navio alemão internado retido em Rio Grande. Formou um estoque, elevou o preço do arame e tratou de garantir-se com outros investimentos. Comprou fazendas perto de São Francisco de Paula, também na região de Criúva e passou a criar gado e ovelhas, pois sentia que sem o arame alemão para vender não resistiria por muito tempo.
Recebeu uma ameaça do contato argentino, que viajou até Caxias para falar com ele:
- trate de conseguir informações senão te denunciamos.
Hemuth, com medo, não querendo perder o que conquistara, começou a inventar informações, com algum fundo de verdade:
- americanos constroem grande base área em Camobi, perto de Santa Maria. A cidade está cheia de pilotos.
- Brasil cria duas forças navais – no nordeste com sede em Recife e no sul com sede em santos. Muitos aviões e belonaves doadas pelos americanos passam por Florianópolis e Rio Grande.
- efetivos militares do exercito crescem em todo o Brasil que deve enviar um exercito para o norte da África e outro para a Austrália.
- fabricas de roupas e de sapatos são requisitadas para a produção de uniformes e botinas militares.
- três divisões do exercito brasileiro estão acantonadas perto da fronteira argentina. Fala-se em invasão iminente.
- enorme estação de radio e de rastreamento de transmissões de rádio estão sendo instaladas em Torres.
E assim passaram-se os anos de guerra.
Finda a refrega veio o medo de ser descoberto. Jogou o radio, os livros de código, a pistola e o comprimido de cianureto no fundo do rio das Antas, depois de ter limpado bem as possíveis impressões digitais. Parecia, no seu pânico de ser denunciado e descoberto, que havia passado os mais relevantes segredos dos Aliados para o alto comando alemão. Não se dava conta de como havia sido ridícula a sua participação. O mal que praticara, a traição, fora a si mesmo e aos seus rígidos princípios de honra e honestidade, nos quais fora criado. Mas ele queria ser rico... e encontrara uma oportunidade fácil – vendera toneladas de arame farpado e ganhara muito dinheiro com esta atividade comercial normal.
A cada instante sobressalta-se com um simples chamado na rua, com o telefone, com visitas. Emagreceu, não saia mais de casa, não visitava mais seus clientes. A administração das fazendas passou para a sua esposa Carmem que despontou como grande negociante a administradora fazendo que os bens da família se multiplicassem.
Deram-lhe de presente, no dia do seu aniversário, em 1948, um romance – O Nosso Homem em Havana, do Graham Greene. Um espião inglês, numa ilha do Caribe, que inventava acontecimentos só para receber o bom pagamento mensal pelos serviços à Coroa. Chegou a descrever um aspirador de pó como sendo uma poderosa arma que estava sendo desenvolvida e os analistas britânicos, por anos, se preocuparam com o que aquela arma poderia fazer e ser empregada. Descoberto, ao invés de ser preso, foi recambiado para a Inglaterra e recebeu uma condecoração... como a melhor forma de encerrar o ridículo da situação criada. O romance o preocupou sobremaneira. Porque o romance fora escolhido pelo filho? Seria um sinal? Uma provocação? Será que descobrira alguma coisa? Será que tinha visto o rádio, os códigos, a pistola e a pílula de cianureto quando pequeno, tão bem escondidos que estavam no porão da casa? As crianças são terríveis para descobrir e ouvir os segredos dos pais.
Um dia precisou ir a Porto Alegre para um exame médico. Hospedava-se no Grande Hotel, quase em frente da Praça da Alfândega. Caminhando uma tarde na Rua da Praia, depois do almoço para fazer a digestão, deu de cara com o seu contato argentino. Nunca mais haviam se visto. Foi um susto para os dois. Pararam. Se olharam e cada um correu para um lado. O argentino, ao atravessar correndo a Avenida Borges de Medeiros, morreu atropelado por um taxi, um pesado carro americano... Helmuth, com a corrida, teve um ataque de angina e caiu sem sentidos na porta do Hotel. Quando acordou, no hospital não disse nada, lembrava-se, apenas, de que haviam tentado roubar-lhe a carteira, por isso tratara de correr para a segurança do hall do Hotel.
- Com a morte do argentino só restam os registros na Alemanha, a Ingrid e o Dr. Stepinak. Devem ter morrido nos bombardeios e os papeis se queimado nos incêndios que foram terríveis, como se pode ver nos cinemas. Com esses pensamentos tentava aquietar sua aflição e insegurança permanentes, que nunca o abandonaram, até o fim da sua vida.
Entrou para a política. Queria ser deputado federal, pois soube que os parlamentares tinham imunidades e não podiam ser presos. Seria uma boa maneira de esconder o seu passado, pensou. Filiou-se a um partido trabalhista e destacou-se como grande contribuinte, financiando as campanhas dos candidatos mais pobres que passaram, por sua vez, a ajudarem nas suas sucessivas eleições. Tornou-se, assim, um líder partidário reconhecido como um homem de visão e um progressista. Em 1953 foi o mais ardoroso gaucho a defender a campanha do Petróleo é Nosso na luta pela criação da Petrobras. Quando o Presidente Getulio Vargas suicidou-se, em 24 de agosto de 1954, foi um dos que mais choraram no estado – fretou um pequeno avião, convidou mais três amigos de Caxias, sendo dois jornalistas, para assistirem o enterro em São Borja. Sua foto aparece ao lado do Osvaldo Aranha quando este discursava junto ao tumulo se despedindo do amigo, o Presidente morto.
No Rio de Janeiro e depois no pouco tempo que freqüentou o Congresso em Brasília, era um sóbrio e respeitado parlamentar – um deputado culto de grande sabedoria - sem escândalos na sua vida pessoal, assíduo freqüentador das sessões, orador comedido, defensor das causas populares, querido por todos, um discreto cidadão no restante de sua vida.
Tanto fez pelos sindicatos, pelo trabalhismo, que na sua quinta legislatura, em 1965, teve seus direitos políticos suspensos pelos militares – um demagogo, agitador, amigo do João Goulart e do Brizola, escreveram no seu processo como motivo da cassação.
- Melhor cassado como esquerdista do que fuzilado como espião, pensou aliviado...
Não sentia remorsos pelo que fizera. Pensava, tentando se justificar:
- minhas informações não ajudaram em nada, ou eram mentiras ou exageros; ninguém morreu por conta do que eu fiz; o dinheiro que me adiantaram empreguei com honestidade para o bem do Brasil; ajudei muito as obras de caridade e de educação. Mal não fiz. Deus há de me perdoar.
Continuou a morar em Ana Rech, na mesma casa, envelhecendo junto com seus amigos da cidadezinha e escutando o velho rádio Telefunken, ainda de válvulas, mas que funcionava, conseguindo sintonizar a Alemanha, só para recordar suas aventuras do passado. Suas fazendas prosperaram nas mãos da Dona Carmem e agora, nos últimos anos, os filhos, todos bem casados e encaminhados na vida, assumiam o comando dos negócios.

Morreu velho, ainda amedrontado pelos seus fantasmas secretos, em 1996, cercado do respeito de todos os seus concidadãos.
Eurico de Andrade Neves Borba
Enviado por Eurico de Andrade Neves Borba em 29/09/2010


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