Tio Newton
Tio Newton,
Eurico de Andrade Neves Borba, 70, escritor, ex Professor e Vice Reitor da PUC RIO, Ex Presidente do IBGE, mora em Ana Rech-RS
Falava manso com leve sotaque nordestino, herança da sua mãe cearense – a vovó Dedé - sorriso humilde e parecendo sempre temeroso de estar sendo intruso num ambiente para o qual não fora convidado. Óculos de lentes muito grossas, mas cercado de uma áurea de extrema simpatia. Era gostoso estar ao seu lado e conversar – falava devagar e sorrindo, o rosto enrugado por causa dos olhos sempre apertados. Era casado com a tia Vitinha, não lembro seu nome correto. Como o marido exibia o mesmo sorriso encabulado, quase não falava – sorria e olhava seus sobrinhos sonhando com os filhos que não tiveram. Eram os pobres da família, queridos por todos os seus irmãos e sobrinhos. Só apareciam quando convidados insistentemente – nunca convidaram para a sua casa, uma modesta e pequena casa em Irajá. A casa que pudera comprar com os seus sempre parcos salários de servidor publico, com a ajuda da vovó, sua mãe.
Assim lembro deles, juntos por mais de cinqüenta anos de casados, sempre parecendo que estavam pedindo desculpas por apenas existirem, mas transmitindo, na humildade de suas vidas, imenso carinho, alegria e amor para todos.
Meu pai, seu irmão mais velho, falava pouco da infância dele e de seus irmãos. Contava das brincadeiras, da rotina da casa na vida errante que meu avô, militar no início do século XX, levava: Rio de Janeiro, Uruguaiana, Bagé, D.Perdrito, cidades que sediavam unidades da cavalaria do Exercito, no Rio Grande do Sul. Contava da viagem em 1902, saindo do Rio, que lembrava com clareza: navio a vapor mas que também usava velas quanto o vento estava “à feição”, (favorável). Seguiam até Porto Alegre com paradas em Santos, Paranaguá, Florianópolis, Rio Grande, Pelotas, em mais de um mês de viagem. Depois trem “Maria Fumaça” até Santa Maria e diligência até D. Pedrito, ou Bagé, ou Uruguaina. Descrevia os postos de muda dos cavalos, de 30 em 30 kilometros, os guarda-pós que usavam para proteger um pouco as roupas da poeira, a alimentação precária – galinha no espeto, churrasco e arroz mole. Lembrava com saudades dos padres salesianos, em Bagé, excelentes professores, vieram da França e todos da família passaram a dominar cêdo este idioma. Em 1907 viram o cometa Haley em D.Pedrito e se lembrava de que a noite sua luz era como a da lua cheia, bem diferente da passagem de 1982, que eu observei - um fracasso de pirotecnia cósmica, para a minha decepção.
Voltaram ao Rio em 1908 e lá a família se estabeleceu no bairro chique da época, em São Cristóvão, perto do campo aonde se realizavam as paradas militares do 7 de setembro. O bairro acabara de inaugurar a energia elétrica, um extraordinário progresso. Vovô, então, fora promovido a major. Por volta de 1912 o Tio Newton apresentou um problema de visão, nos dois olhos. Procuraram os melhores médicos e a opinião final era de que sofria de uma rara doença que estava deslocando a retina. Os olhos não podiam ser mais solicitados para a leitura, a cabeça não poderia sofrer de pancadas e o jovem Newton deveria parar de estudar, (estava concluindo o curso médio). Os médicos escolheram até a sua profissão, que exigia pouco dos olhos: telegrafista, podendo exercer a novidade tecnológica da época – a telegrafia.
Tio Newton foi ser radio telegrafista do Lóide Brasileiro que, na época, era uma formidável empresa de navegação, fundada pelo Barão de Mauá. O Loide foi, por décadas, um instrumento poderoso para o incentivo do desenvolvimento brasileiro, naquele crucial instante em que o Brasil começava a comercializar pesado com o resto do mundo e a se modernizar. Exportávamos muito café, mas também cacau, babaçu, charque, couros, minério de ferro, tudo em navios de carga, com alguns passageiros, em porões vários, que eram abastecidos por guindastes ou do próprio navio, mas geralmente usavam os dos portos. Não havia contêineres, que só surgiram setenta anos depois.
Com dezoito anos, 3º oficial embarcado em um dos navios da Companhia, radiotelegrafista, Tio Newton partiu e conheceu todos os continentes. Como sua especialidade não era muito solicitada quando atracados, desembarcava e ia visitar a terra estranha, uma aventura para ele, tempos que nunca esqueceu e que sempre recordava com satisfação. Foi a época gloriosa da sua existência.
Viajou de 1915 até 1928. Recatado contava meio encabulado que havia conhecido tantas mulheres que chegara a fazer uma lista para poder se lembrar. “O Bonifácio, (meu pai já médico desde 1919), providenciava as camisas de Vênus, duras como o diabo, vinham enroladinhas com muito talco para a borracha não grudar. Nunca peguei uma gonorréia ou sífilis, só chato, mas estes eu sabia matar com inseticida...” Contava em voz baixa e ria das nossas gargalhas. “Depois que eu conheci a Vitinha e comecei a namorá-la, nunca mais tive outra mulher. Não se pode desrespeitar a esposa da gente, não è?” Na época da lei Seca, nos Estados Unidos, entre 1920 e 1933, o contrabando de bebidas era a regra para burlar a lei sem sentido, Tio Newton ganhou algum dinheiro. Contava que enchia os intervalos entre as válvulas do seu equipamento de rádio, (eram válvulas naquele tempo – nada de chips e transistores), com garrafas de um litro de cachaça, boa e barata, mas que se transformavam em três outras quando aportavam na América. “Ganhei um bom dinheiro e me diverti. Como não podia ler, ver, contemplar, tratava de apalpar, acariciar, cheirar, possuir, comer, tudo o que os demais sentidos permitiam,” dizia então, rindo baixinho e encolhendo os ombros.
Casou-se em 1929, saiu do Loide e foi trabalhar no serviço de radiotelegrafia do governo que começava a prestar auxilio e suporte aos primeiros aviões que começavam a voar comercialmente. Sua primeira base foi em Natal, no Rio Grande do Norte. Tia Vitinha, sem nada receber, era sua auxiliar. Travou contato com a turma de pilotos da Aéropostale, empresa francesa que explorava o serviço conhecido como o Correio do Sul, (titulo de um livro famoso do Saint-Exupéry), com um necessariamente longo percurso devido a necessidade de reabastecimento: Paris, Touluse, Barcelona, Alicante, Malaga, Tanger, Rabat, Casablanca, Agadir, Cap-Juhy, Vila Cisneros, Port Etienne, Sain-Louis e, depois, a grande travessia Dakar, Natal, seguinto a mala postal para Recife, Salvador, Caravelas, Vitória, Rio de Janeiro, Florianópolis, Pelotas, Montevidéu, Buenos Aires, Mendonza e Santiago, ida e volta. Eram quatro dias de viagem, ponta a ponta, com as tripulações se revezando em cidades pré-determinadas. Começaram com aviões monomotores potentes e carregavam as malas postais, os célebres e valentes aviões Laté 25, (com um dos quais Mermoz aterissou em emergência, nos Andes, a quatro mil metros de altitude, sobrevivendo, em heróica resistência, descrita também por Saint-Exupery, durante quase duas semanas, até ser resgatado). Apenas o piloto e a imensidão do deserto, do mar, dos Andes – um desafio para pessoas de valor... Só em 1933 começaram a oferecer duas ou três vagas para os raros passageiros, no Laté 26-2R.
Estes heróis desbravadores passavam por Natal e se relacionaram bem com o Tio Newton: Saint-Exupery, Vacher,Guillaumet, Mermoz, e tantos outros. Passado anos, lá por 1960 , conversando com meu tio, ouvindo suas histórias, comentei sobre a morte, na guerra, do Saint-Exupery e o seu renome internacional com grande expressão literária. Tio Newton não sabia. Escutou e disse: “Era o mais calado. Quase não conversava. Ficava olhando o mar, se despedia e seguia viagem. Achava ele meio antipático. Não sabia que escrevia e que ficou famoso. Vejam só...”
Para a travessia do Atlântico o piloto fixava um rumo, estudava as poucas informações metereológicas que existiam, principalmente os ventos, e lá iam céus a fora – a grande aventura da conquista dos ares. Calculava-se a aproximação de Natal pelas horas de vôo. O piloto ligava seu radiogoniometro, que indicava a direção de uma dada emissão de rádio, com freqüência bem definida e sinal específico que o identificava – avião deveria manter sua proa nesta direção indicada. Tio Newton tinha as escalas dos vôos e a hora aproximada de chegada, geralmente pela manhã. Começava então a teclar o seu prefixo: traço, traço, traço, ponto, ponto, traço e aguardava alguns segundos para repetir a seqüência até que avião aparecesse. Tia Vitinha gritava: - “Newton, lá está ele”. Então era emitido uma série interminável de pontos e o piloto, já avistando a pista, recebia os dados finais da direção e velocidade do vento, que a Vitinha coletara e passava para o seu marido. Quando o tempo estava fechado era mais complicado: era preciso teclar o prefixo, tia Vitinha escutar o barulho do avião que, sabendo que estava muito próximo da base, girava em círculos de tempos em tempos, e ela berrava alto: - “está muito para o sul”, ou então, “Newton ele passou e está indo prá o sertão...” O telegrafista tratava de orientar o piloto da melhor maneira possível, já que ele não via nada por causa das nuvens e o pessoal de terra só ouvia o som para poder orientar a aproximação. Voava com velocidade reduzida e quando passava em cima da pista Tia Vitinha avisava e o Tio Newton parava de transmitir – o piloto então sabia que passara por cima da pista. Como naquela região não há montanhas ele voltava pela mesma rota baixando até que rompia as nuvens, enxergava a pista e aterrizava. Tio Newton, com orgulho, dizia: - “nunca perdemos ou extraviamos um avião, não é Vitinha!”
Contava que os pilotos desciam do avião direto para o banheiro e depois pediam água de coco e queijo de coalho assado com biju. Comiam, conversavam em francês, que Tio Newton desde Bagé dominava bem o idioma, fruto das aulas dos seus mestres salesianos, abasteciam o avião, checavam as previsões meteorológicas, desembarcavam a mala postal de Natal, pegavam as outras malas para o sul e levantavam vôo com o rumo a Recife a 160 km/h...
Em 1934 Tio Newton foi transferido para Pelotas, no Rio Grande do Sul. “Era um servicinho aborrecido, rotineiro, sem nada de importante para lembrar, transmitia e recebia mensagens o dia inteiro. Não tínhamos horário de trabalho, existiam as tabelas de vôo com os horários e eu tinha de estar lá no teclado à postos. Fazia frio quase que o ano inteiro e o tal de Minuano ventava que zunia pelas portas e janelas. Não fizemos amizades. Era triste com aquele frio todo. Vitinha e eu não gostamos de lá...”
Com a criação do Ministério da Aeronáutica, em 1941, o serviço de radiotelegrafia passou a ser de responsabilidade desse Ministério. Tio Newton foi transferido para o Rio de Janeiro e passou a trabalhar no aeroporto Santos Dumont, num prédio ao lado, de onde a Força Aérea Brasileira, agora responsável pela organização de todo o trafego aéreo do país, mantinha contato com os aviões que voavam nas cercanias da cidade. Tio Newton nunca ascendeu a postos de chefia devido a sua baixa escolaridade e diria eu à sua humildade. Fazia com competência seu trabalho: recebia e transmitia mensagens. Aposentou-se, com baixo salário e o único benefício de poder usar os serviços do Hospital da Aeronáutica. Nunca reclamou. Foi morar em Irajá, adotaram uma filha que criaram com extremo amor. Na sua saída meu deu um Manual de Sobrevivência com uma dedicatória – “uma lembrança do seu Tio Newton”, editado pelo Ministério da Aeronáutica, que guardo até hoje.
Foi neste período que eu mais conheci o casal. Conversávamos nas festas da família, que naquele tempo ainda eram freqüentes e em Paquetá, onde vovô, já idoso e viúvo, gostava de reunir filhos e netos. Sentados na varanda, com a linda vista do fundo da Baia da Guanabara e da Serra dos Órgãos à nossa frente, a brisa fresca da tarde, provocava um assunto e deixava o tio falar. Conversamos muito. Não era um erudito, mal acompanhava as noticias do dia, mas sua conversa cativava pela simplicidade e espontaneidade.
Achava muita graça nas histórias dele como eletricista. Pela simples razão de lidar com um aparelho elétrico de radiotelegrafia, a família, uma parte dela, aqueles parentes sempre atentos em descobrir a possibilidade da prestação gratuita de um serviço ou de uma consulta de graça de um parente médico ou dentista... Chamavam o Newton – “ele está aposentado e se distrai...” – e entregavam-lhe para consertar ferros de passar roupa, rádios que deixavam de funcionar ou fazer instalações elétricas, instalando tomadas, puxando extensões. Algumas vezes funcionava, mas muitas outras produziam estrondos e curtos circuitos de bom tamanho, queimando os fusíveis da casa, (não existiam disjuntores automáticos como hoje em dia). As irmãs da vovó, cearenses como ela, todas solteiras, as tias – Zaira, Quelebe, Zelia e Rolinha – “escriturarias” aposentadas do Ministério da Fazenda, eram mestras em convocar o sobrinho para pequenas tarefas. Haviam alugado em Paquetá uma casa perto da dos meus avós – a Casa Verde. Pediram para o Tio Newton inspecionar as instalações elétricas, já muito velhas. O diligente sobrinho, sempre querendo agradar as tias, passou vários dias trabalhando, colocando fios novos, isolando os antigos, colocando tomadas e novos pontos de luz. No dia da inauguração, ligada a chave geral, tiveram que chamar os bombeiros de Paquetá – por toda a casa as fagulhas saltavam e muita fumaça em alguns pontos. Tio Newton, quase não enxergando, só de perto, com o nariz nos fios que instalara percorria o que havia feito e tentava desconectar a ligação errada. Foi o assunto do dia em toda a ilha. Nunca mais o meu tio foi chamado para prestar quaisquer serviços elétricos.
Outro aspecto que me encantava era a curiosidade compulsiva que o Tio apresentava. Em visitas, entrava pela casa e começava, com a maior simplicidade e ingenuidade, a abrir gavetas e armários para conferir o conteúdo. Não resistia a um envelope – não lia o conteúdo, mas abria a carta e passava os olhos... Não havia revista, livro ou caixa que resistisse a ser aberto e observado. Até hoje, na família, quando alguém começa a ser muito curioso recebe logo o apelido de Tio Newton.
Vovô faleceu em 1965. Soubemos que o Tio Newton começara a passar dificuldades. Sempre desconfiamos que nossos avós davam alguma coisa por mês para eles, para complementar o orçamento reduzido do casal de filhos. Papai e mamãe, então morando em Porto Alegre, escreveram e passaram a enviar uma quantia que os ajudava muito. Quando papai e mamãe morreram, em 1982, tal tarefa foi assumida por minha irmã Yeda. Morando em Brasília havia me afastado do meu Tio e falava com ele apenas por telefone, na época do Natal. Nestes instantes, alegre por ser lembrado expressava uma constrangedora gratidão pelo que recebia de todos nós seus.
Aposentado, vivendo no subúrbio do Rio, começou, com a Tia Vitinha, a participar de um Centro Espírita e se dedicaram ao fazer o bem cuidando de doentes, velhos e crianças, em asilos mantidos pela entidade religiosa. Faleceram com uma diferença de meses, em 1987, velhinhos, felizes, sorridentes, sem nunca de nada reclamar, só agradeciam. Deixaram gostosas lembranças de tempos descontraídos, sem tensão, como que só existisse o prazer simples de viver – assim pensávamos nós, então crianças ou jovens.
Agora, aqui na serra gaúcha, sou acordado em certas manhãs por um pica-pau que no pinheiro, que existe bem próximo da minha janela, bate seu bico à procura de insetos. Ouço, no entanto, um antigo som de transmissão em código Morse, que aprendi lá se vão anos, quando era escoteiro. Digo para mim mesmo – é o tio Newton tentando se comunicar... Em todos estes anos só consegui perceber uma palavra, que se repete de vez em quando, mas que me basta, restaurando minha alegria com o dia que começa: . - -- . (A M E).
Eurico de Andrade Neves Borba
Enviado por Eurico de Andrade Neves Borba em 28/01/2011