A evidência desdenhada
A evidência desdenhada.
Publicado no Diário do Poder de 3/7/25, Brasília, DF
Nenhuma proposta de ação coletiva prosperará se não houver um mínimo de pensamento comum, uma crença única que a todos una. Refiro-me a existência do pensamento natural que conduz as pessoas a reconhecerem a pessoa humana como um ser distinto dos demais seres do universo, portador de uma dignidade inata. Esta natural densidade ética, difusa e unificadora, indicadora de um objetivo a ser permanentemente explicitado, induziu o surgimento das sociedades e o progresso da Civilização Ocidental.
Esta unidade essencial mínima, no pensar e no agir, expandiu-se no Ocidente à sombra do Cristianismo há 2.000 anos.
A Humanidade, no Ocidente, está perdendo a sua identidade, cedendo espaço às hipnotizantes tecnologias, à ganancia e ao desejo de poder da classe social dominante - os ricos e os muito ricos – os que governam os povos. As modernas técnicas de informação e propaganda habilmente induzem as pessoas pelo rádio, televisão e internet, sobre qual deve ser o comportamento social e político “correto”. A competição seletiva, não a solidariedade, é inculcada nas mentes como virtude, desde a mais tenra idade.
As pessoas de qualquer formação ou opção política, são alvos selecionados das propagandas, pela “inteligência artificial” que utiliza as milhões de informações contidas, por exemplo, nos cartões de crédito, cadastros eleitorais, contas de luz, etc., permitindo um maciço marketing “personalizado”, identificando as preferências de grupos sociais e de pessoas pela análise dos seus consumos. O argumento falacioso de se estar informando para possibilitar maior liberdade de escolha, na verdade se está gerando novas expectativas de consumo de produtos e serviços. As populações estão expostas a esta abusiva pratica, que “empurra goela abaixo” o que deve ser consumido e em quem se deve confiar e ter como liderança política, liquidando com a privacidade, a intimidade e a liberdade das famílias, das cidadãs e dos cidadãos do mundo inteiro.
O dever moral da solidariedade consciente é o que se propõe, para reerguer a decadente Civilização Ocidental. A aceitação da compaixão e do respeito ao próximo são o início de quaisquer providencias necessárias para recompor a Civilização e a Democracia, no bojo de um longo processo político. Não são apenas virtudes – são crenças enraizadas, incentivos para uma ação consciente das cidadãs e cidadãos nas suas vidas, nos seus trabalhos e nas suas manifestações políticas.
O atendimento das necessidades básicas dos pobres e dos miseráveis – emprego, alimento, moradia, transporte, vestuário, educação de qualidade e saúde pública - é uma exigência a ser atendida com urgência. A dignidade natural do ser humano é uma verdade indiscutível e precisa ser efetivamente respeitada. São pessoas que estão sofrendo e sendo humilhadas por suas abjetas condições de vida que, historicamente, lhes foram impostas. O resgate dessas multidões só será possível pela reorganização dos atuais sistemas políticos de produção/consumo, gerando novas formas de convivência digna para todos. As poucas experiências que restaram do socialismo real, (o fracassado comunismo), e o atual liberal capitalismo sabem muito bem como lidar com suas explicitas ou sutis formas de opressão, de tal forma que as classes dominantes, que as governam, permaneçam no poder. Não serão estes sistemas político-econômicos que recuperarão a Civilização.
A miséria, a fome, atrapalham o sistema capitalista. Não é sua a responsabilidade resgatá-los. A multidão de marginalizados está entregue à própria sorte.
Virtudes e valores morais não são impostos por leis. Um alicerce ético, erguido em séculos de história, tendo a família como a referência primeira, além da educação integral de qualidade, são as melhores opções para a reorganização dos povos. As religiões cristãs, no passado, tornaram possível, no amplo espaço cultural criado pela fé, o pensar lógico e o progressivo agir democrático dos povos do Ocidente, tecendo o ambiente intelectual adequado ao progresso das artes, das ciências e dos sistemas políticos e jurídicos. As religiões cristãs históricas precisam voltar a se fazer notar, pela atração das suas humanistas propostas evangelizadoras, motivando os povos a retornarem a se organizar e a se engajar, como no passado, nas lutas por uma justa, democrática e mais humana forma de convivência.
Isto é um trabalho que precisa ser iniciado pelo debate de propostas como esta, que não é uma reflexão ingênua, muito pelo contrário - é o chamamento para a necessária atenção para a evidente e única forma de se iniciar a recuperação do declínio da Civilização.
Seres humanos estão morrendo de fome e se matando em guerras sem sentido, o clima do planeta está mudando rapidamente colocando em risco o futuro da Humanidade, a ausência de empregos substituídos pela informatização das sociedades é uma realidade. É cada vez mais evidente a inaceitável separação e contraste entre os ricos e os miseráveis.
Estamos vivendo um momento histórico onde a informática, a inteligência artificial e o abandono das Religiões Históricas, obrigam a repensar a organização e o funcionamento das sociedades democráticas. É preciso que se volte a discutir o como garantir o efetivo atendimento das necessidades básicas dos povos, as limitações da iniciativa privada em promover o emprego e a justiça social, as exigências do Estado Democrático de Direito, de tal forma que a igualdade e a liberdade das pessoas possam se manifestar plenamente. As possíveis novas formas de consciente participação política do povo, honestamente esclarecido e informado, com a ajuda das modernas tecnologias de comunicação, dificultarão que os demagogos, incompetentes e desonestos sejam os mais votados nas periódicas eleições.
O caos e a injustiça social nos envolvem cada vez mais. Os miseráveis poderão vir a se rebelar de forma violenta, não criativa, num protesto radical contra a discriminação socio econômica a que estão submetidos há séculos. Os excluídos não continuarão a assistir, submissos, a cada vez mais evidente distinção entre a minoria de pessoas que desfrutam do extraordinário desenvolvimento da humanidade e a maioria que são excluídos das benesses do progresso, em virtude dos sistemas sociais, políticos, econômicos e jurídicos, que foram se cristalizando no último século.
A Humanidade deve sobreviver com dignidade e paz. Para tanto é preciso dar um basta na atual situação, cínica e cruel, para que possamos voltar a sonhar com uma convivência democrática, solidária, justa e pacífica.
Eurico de Andrade Neves Borba, 84 anos, ex professor da PUC RIO, ex Presidente do IBGE, é do Centro Alceu Amoroso Lima para a Liberdade, mora em Ana Rech, Caxias do Sul,RS, eanbrs@uol.com.br
Eurico de Andrade Neves Borba
Enviado por Eurico de Andrade Neves Borba em 04/07/2025